Embora a versão de 1928 do rato mais famoso do mundo tenha entrado em domínio público somente no primeiro dia deste ano, o Mickey Mouse já tinha sido “apropriado” na Bahia. O personagem passou a ser o símbolo de uma facção e, com isso, o terror foi instalado no recôncavo baiano. Na madrugada de 03 de janeiro, em Saubara, a 100 km de Salvador, o ambulante Allisson Cerqueira Nascimento, 18 anos, foi assassinado porque usava uma camiseta com o desenho do personagem. “Eles rasgaram a camisa que a avó deu de presente. Deram garrafadas. Só porque tinha o desenho”, declarou a mãe do adolescente, Simone Souza Cerqueira.
O crime foi praticado por traficantes do Bonde do Maluco (BDM), rivais de A Tropa, organização que foi associada ao personagem. De acordo com a polícia, pelo menos seis homens participaram do crime, dois de Feira de Santana, onde a guerra também é acirrada entre o BDM e A Tropa. As duas facções também estão em Salvador, sendo que a primeira está presente na maioria dos bairros, e a segunda no Sieiro, São Marcos e Mata Escura; além da Avenida São Rafael e o seu entorno.
Allisson foi morto na Praia de Cabuçu, a mais procurada da cidade, principalmente por veranistas de Feira de Santana, devido à distância (88 km) e o mar tranquilo. Ele morava em Feira, mas estava no local para garantir o sustento da família – tinha um filho de apenas 1 ano e 10 meses – vendendo queijo coalho nas barracas de praia e no entorno. “Ele era muito querido aqui. Nunca se envolveu com nada”, disse um garçom de uma das barracas.
Crime
Na tarde do dia 02 (terça-feira), Allisson estava numa festa paredão na Praia do Sol, região vizinha de Cabuçu. “Ele usava uma das três camisas que ele ganhou de Natal da avó. Era vermelha, com o desenho pequeno do Mickey. Ele chegou a ser alertado pelos outros jovens que vendiam queijo com ele: ‘rapaz, tire. É de facção. Vão pegar você’. Mas ele disse que não devia nada, que a camisa era presente”, relatou o garçom, amigo da vítima.
Horas depois, Allison foi a outro paredão, desta vez no centro de Cabuçu, na Rua da Ilha, onde encontrou outros amigos. Pouco da meia-noite, ele foi cercado por um grupo de rapazes, que exigiram que ele retirasse a camisa. “Ele disse que não, que foi a avó quem deu a ele. Foi aí que começaram a bater nele de socos, chutes, na frente de todo mundo. Ele caiu e deram garrafadas. Ele já estava morto, quando ainda assim atiraram”, contou um dos ambulantes que conhecia Alisson e estava no paredão.
O dono de um bar, que fica na mesma rua, disse que ouviu os disparos. “O meu estabelecimento fica próximo ao local que houve a confusão. Daqui deu pra ouvir os tiros. Na hora, coloquei os clientes para dentro e fechei tudo. Só bem depois, quando não havia mais risco pra ninguém, que saímos e soubemos do triste fim do rapaz”, lamentou.
Terror
A morte de Allison deixou moradores aterrorizados. “A gente nunca viu isso por aqui. Uma pessoa foi morta só porque usava a camisa com o desenho do Mickey. Queimei a minha blusa e a de minha filha. Ninguém quer ter o mesmo fim”, disse uma senhora. “Já proibi de minha menina sair com os conjuntos que ela ama do Mickey e da Mine. Esse pessoal não quer saber se usou por engano, se é trabalhador ou criança. Pra eles, todo mundo é a mesma coisa, inimigo. O que fizeram com o jovem (Allisson) foi uma brutalidade. Tudo por causa de um desenho”, disse outra mãe.
O medo teve reflexo também na economia de Cabuçu, que vive do dinheiro gasto por veranistas e turistas. “No dia seguinte ao crime, muita gente que chegou aqui no Réveillon e pretendia ficar até depois do Carnaval, foi embora. Houve o comentário que o pessoal da A Tropa mandou um recado dizendo que ia vingar a morte do inocente (Allison) e as lojas fecharam, algumas não abriram até hoje, porque também não tem policiamento. Quem abriu, tirou das vitrines as roupas com a estampa (do Mickey), com medo de eles metralharem tudo. Antes de tudo isso, eu, que trabalho com moda praia, vendia 20 peças dia, hoje, sequer alguém entra na loja”, disse uma vendedora.
O pavor também chegou ao centro de Saubara. “O crime não foi aqui, mas o fato deixou tudo mundo aqui aflito. Eu mesma não vendo mais nada com o desenho (Mickey) e nem os clientes procuram mais a estampa”, contou a dona de uma loja de artigos masculinos e infantis.
Muitos moradores da cidade se mostraram surpresos com a associação do personagem à facção. “Não é algo de conhecimento de todos. Um pouco antes do ano novo, rolou boatos de que o BDM não queria ninguém usando nada que tivesse o Mickey. Isso seria reflexo do que já vem acontecendo em Feira (de Santana). Há cerca de um mês, uns clientes de á, disseram que o BDM estava pegando quem usasse qualquer coisa (do personagem)”, relatou o dono de uma barraca da Praia do Sol.
Inocente
O comandante da 20º Companhia Independente (Santo Amaro), major Marcos Davi, disse que Allison foi mais um inocente vítima da guerra entre facções. “Ele não tinha envolvimento com o tráfico, foi simplesmente abordado por integrantes de uma facção, que tem como rival outra que usa o como símbolo do Mickey”, declarou o comandante.
A mãe de Allison disse que o filho era sonhador, que projetava uma vida melhor para a família. “Era muito trabalhador. Saia daqui, de Feira, cedo para vender queijo em Cabuçu. Ele andava aquela praia todos os dias e só retornava à noite. Ele queria ser motoboy e estava pagando o consórcio de uma moto com o dinheiro que conseguiu juntar quando foi menor aprendiz na Caixa (Econômica Federal)”, declarou Simone.
Ela soube da morte do filho através de uma ligação. “Estou destruída. Ele era muito inteligente, meu orgulho. Não consigo ficar em casa um segundo, porque caio de choro. Tudo me lembra ele”, desabafou. “E o meu coração está ainda mais destruído, porque não tem dois mês que um parente foi morto por nessa guerra entre eles. A pessoa tinha envolvimento, mas meu filho, era se metia em nada”, disse ela.
Até o dia 12, ninguém havia sido preso. Em nota, a Polícia Civil disse que o crime é apurado pela delegacia de Saubara.
Homicídios
A morte de Allison foi a primeira registrada na cidade neste ano, segundo comandante, major Marcos Davi. No ano passado, foram 69 homicídios na área 20ª CIPM, que abrange oito cidades: Santo Amaro da Purificação, Saubara, Terra Nova, Teodoro Sampaio, Amélia Rodrigues, Conceição do Jacuípe, Conceição de Feira e Coração de Maria. Em 2022, foram 89 homicídios – uma redução de 25%. “Deu uma encolhida, mas agora tem os um problema com ‘Fuscão’. Ele estava preso há 10 anos, por homicídio e tráfico, mas há dois meses, saiu do Presídio Salvador, junto com o irmão, Jânio. Os dois estavam no semiaberto. Certa vez saíram e não voltaram”, contou o major Marcos Davi.
Questionado sobre o clima de insegurança, o major Marcos Davi disse que o policiamento na região está reforçado. “Lamentamos ocorrido, mas estamos com duas viaturas com três policiais para Saubara, temos a guarnição da Peto com quatro policiais fazendo rondas diárias. Nos finais de semana ainda temos a Operação Verão com 20 homens, com quadriciclos e uma base móvel para apoio da tropa. Além disso, temos o emprego da cavalaria da Feira de Santana e o do Esquadrão de Motociclistas Asa Branca“, declarou o major.
Segundo ele, “Fuscão” e o irmão estão em Santo Amaro da Purificação para reconquistar os territórios do BDM e de A Tropa, em Ilha do Dendê, Pilar, Candolândia. Esses conflitos podem acirrar embates também em regiões próximas, como Saubara. “Quando foi preso, ‘Fuscão’ não tinha bandeira, mas ao retornar, se aliou ao Comando Vermelho. E temos um outro agravante: Saubara tem dois distritos, Cabuçu, onde tem o litoral, e Bom Jesus, que é mais próximo de São Roque de Paraguaçu, em Maragogipe, onde é atuação da Katiara, outra organização que briga pelo Recôncavo”, detalhou.
Ainda de acordo com o major, o líder de A Tropa morreu confronto com a polícia em Salvador. “ ‘Seu Preto’ trocou tiros com a Cipe Litoral Norte nas imediações do Barradão. Isso há seis meses. Hoje, a gente não tem ideia de quem está no comando, mas temos alguns nomes, que na época tinham notoriedade dentro do grupo, como Caique.”, declarou o major.
Posicionamentos
O CORREIO procurou a Secretaria de Segurança Pública através de e-mails, enviados para o endereço eletrônico ascomsspba@gmail.com, nos dias 11 e 12 deste mês, às 08:57, questionando a insegurança na cidade e quais as medidas adotadas para minimizar a situação, mas até o momento não respondeu. No mesmo dia, a reportagem fez as mesmas perguntas à Polícia Civil, através de e-mails, enviados para os endereços eletrônicos policiacivilascom@gmail.com e ascom.policiacivil@pcivil.ba.gov.br às 09:02 , que também não se posicionou.
Fonte: Correio